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RESENHA - A SAPATEIRA INSUBORDINADA E A MÃE EXTREMOSA

Por Giovanni Castiglioni

Two Women and a Child, 1926. Diego Rivera.
Two Women and a Child, 1926. Diego Rivera.

Imaginemos as duas cenas:


Cena 1: Janeiro de 1958, Therezia H. W. Primaz, costureira, empregada de longa data foi trabalhar depois de ter faltado no dia anterior, sua “contramestre” a procura e indaga o motivo das faltas, a empregada afrontosa, com histórico de suspensões por indisciplina, responde que não devia satisfações e que iria chamar seu marido, a contramestre dirigi-se ao escritório do chefe, a costureira se retirou, nunca mais voltou.


Cena 2: Janeiro de 1958, Therezia H. W. Primaz, costureira, empregada de longa data, foi trabalhar e encontrou as portas da empresa fechada, seu patrão e a contramestre não a deixavam entrar. Uma de suas amigas ouviu o chefe dizer que em razão dos muitos cuidados que a funcionária tinha que tomar com seu filho recém nascido era melhor que ficasse em casa. Desde que engravidou o patrão a persegui-la, criando dificuldades para que amamentasse seu filho doente.


Processos judiciais nascem de conflitos e contém narrativas contraditórias, os processos “(...) só se materializam porque não há uma forma consensual de narrar certas experiências sociais.”. Assim é esta reclamação trabalhista, analisada por Benito Bisso Schmidt em “A Sapateira insubordinada e a Mãe Extremosa”. Na primeira cena vemos uma mulher indisciplinada, falta ao trabalho sem justificar, destrata seus superiores; na segunda uma “mãe extremosa”, se esforçando para nutrir seu filho, sofrendo perseguições de seus chefes em razão de seus deveres maternos. Ambas as Therezias, trabalhavam na fábrica de calçados Wist. & Cia. Ltda e no final da década de 1950 comparecem à Junta de Conciliação e Julgamento de Novo Hamburgo alegando a injustiça das punições sofridas. Temos uma pessoa física “real”, mas temos duas imagens desta, o autor nos indaga: haveria uma verdadeira Therezia? seria uma trabalhadora insubordinada ou uma mãe dedicada? a resposta é que na verdade não importa, porque é impossível captar a verdade de uma pessoa, “verdades são construídas e disputadas contextualmente”. O interessante aqui é como as partes operam os discursos, como relatam as experiências de trabalho.


Um dos objetivos de análise do texto é entender como os mecanismos disciplinares da empresa eram descritos. Foucault analisando diversas instituições na segunda metade do século XVIII, dentre elas as fábricas, percebe que nelas passou-se a controlar o tempo nas tarefas ali executadas, buscando um tempo integralmente útil, marcado pela exatidão, aplicação e regularidade. Este poder disciplinar que busca “moldar corpos dóceis” no âmbito do Direito do trabalho se manifesta na autoridade que o empregador tem em aplicar sanções frente a desobediência do empregado. Segundo Schimdt o poder disciplinar serviria também para reafirmar a autoridade do patrão, incidindo sobre o próprio corpo dos empregados, inclusive em suas funções fisiológicas.


A imagem de uma “Therezia indisciplinada” é construída em torno do poder disciplinar. Desafiou uma das normas da empresa: não se alimentar durante o serviço. A sapateira trabalhava em uma fábrica, produtos químicos, tecidos se misturavam às mulheres daquele galpão, não seria esta proibição sustentada por critérios técnicos, ou seja, para evitar que as matérias primas fossem sujas ou até mesmo em nome da segurança das trabalhadoras? Não seria justo suspender uma empregada que desobedecia uma norma conhecida por todos que ali trabalhavam? Therezia busca reverter essa imagem construindo uma outra imagem: a de mãe extremosa. Afirma que fora suspensa por comer em serviço, porém, o médico deu-lhe um atestado para que passasse a se alimentar melhor, para amamentar seu filho que nasceu doente, aqui temos uma mãe que faria qualquer coisa por seu filho.


Ao final do processo observamos que a imagem da sapateira que mais ecoou nos tribunais fora a da trabalhadora indiciplinada. Em 3 de Agosto de 1959 a Junta de Conciliação e Julgamento de Novo Hamburgo julga a reclamação procedente em parte: as sanções aplicadas pelo empregador foram justas, porém, se reconhece como justo o fato de se alimentar para o aleitamento, mas deveria ter feito de outra forma, entregue o atestado ao empregador e não “procurando se alimentar, de maneira acintosa, provocando atritos com o patrão”. Embora o Judiciário Trabalhista reconhecesse e acolhesse a “mãe extremosa”, esta não neutralizava a Therezia indisciplinada. A partir da década de 1930 a figura do “trabalhador indisciplinado” passa a funcionar como o oposto da base para o progresso da nação, o modelo de sujeito padrão que todos deveriam seguir: o bom trabalhador. O texto através de uma pesquisa documental e entrevista com as partes envolvidas traça discussões acerca das relações gênero na fábrica e como o poder disciplinar dialoga com as duas imagens da trabalhadora aqui apresentadas.


O texto ainda que pequeno consegue caracterizar questões relevantes do Direito do Trabalho. Através da análise documental o autor ilustra as dinâmicas e tensões da fábrica e do processo judicial. Me chama atenção como o autor problematiza questões que poderiam cair em consenso médio, como a hierarquia entre a operária e sua superior em um momento fora vestido de cumplicidade de gênero a contramestre sentiu pena e disse que não suspenderia mais a empregada, porque um dia poderia estar grávida. A ambiguidade que permeia o texto é fascinante. Não seria a proibição questionada justificável em razão da natureza do trabalho e da própria segurança dos trabalhadores? não teria o patrão se esforçado para atender a situação da empregada? Ou por outra perspectiva, não se buscou excluir Therezia do trabalho porque não se encaixava na imagem da empregada exemplar? O poder disciplinar aqui não é usado em razão da maternidade afetar a dinâmica de produção da fábrica?


A genialidade no texto é de demonstrar a subjetividade do processo, da verdade. O processo trabalhista aqui se mostra como uma disputa narrativas, os personagens são ambíguos, as dominações são justa ou cruéis. O destaque do texto é cuidado que o autor teve em buscar as partes da reclamação décadas depois e ver como estas lembram o ocorrido. Textos como este nos fazem sentir que ficar na dogmática às vezes não basta, é preciso escutar as pessoas, se ater aos momentos históricos e entender que o conhecimento é um campo de disputa.


Referência:

SCHMIDT, B. B. A sapateira insubordinada e a mãe extremosa. In: GOMES, A. C et al. (Orgs). A Justiça do Trabalho e sua história: - Os direitos dos trabalhadores no Brasil. 1. ed. São Paulo: Ed. Unicamp, 2013. Cap, 4, p. 157- 199.

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