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A utilização do direito penal como ferramenta para a criminalização de gênero e sexualidade
Lorena de Castro dos Anjos

A grande superestimação do direito penal configura o cenário atual de risco aos segmentos marginalizados e excluídos do patamar de “sujeitos de direitos”. A Justiça penal e os sistemas penitenciários agregam no contexto brasileiro a ideia de “fazer valer a lei e a ordem”, como se o direito penal surgisse em meio à desordem para trazer a paz. Entretanto, ao analisarmos como tal sistema se formou e opera na sociedade percebe-se como as desigualdades e a seletividade na aplicação penal se faz mais que presente no discurso punitivista.
O direito penal se utiliza de questões extralegais que intensificam as desigualdades e discriminações, através de preconceitos, sensos comuns e convenções sociais. A exemplo disso, é mostrado através das lentes de gênero como as estratégias de penalização vão além de uma repressão ao crime em si, e partem para a esfera da parcialidade e utilizações de contornos morais a fim de criminalizarem o gênero.
A construção histórica da criminalização da sexualidade e gêneros pode ser percebida através da análise de décadas atrás e a relação com que a sociedade mantinha com a homossexualidade. Partindo da década de 1890, na qual é possível notar a presença do direito penal como arma poderosa no combate ao “diferente” criminalizado. Especialmente a prostituição e a sodomia receberam destaque quanto à males a serem combatidos, seguindo das tentativas incansáveis de tipificar a homossexualidade.
Durante todos os anos que se passam existe cada vez mais a relação intima entre o direito penal e as práticas da medicina legal para determinarem a patologização de indivíduos considerados desviados das práticas sociais dos “bons-costumes”. Não apenas esses dois dispositivos corroboravam com a criminalização das práticas sexuais, o discurso religioso com a condenação do ato homossexual como pecado, a constante estigmatização das pessoas com experiências de gênero diferente também entravam dentro das forças dispostas para excluir e apagar completamente as identidades e atividades que fugiam do tradicional denominado de bons-costumes, baseados na matriz heteronormativa e religiosa (VIDAL, 2020).
A categoria “Homossexual” foi vista como um perigo social e explicitamente patologizada. Os mecanismos para punir a homossexualidade se sofisticavam cada vez mais, aumentando o estado de vigilância que a comunidade LGBT se encontra através dos meios legais policiais, que utilizam da moralidade como justificativa para repressão. Desse modo, até mesmo a sexualidade feminina através da prostituição partia para esse estado de vigilância, dentro das pesquisas científicas medicinais que correlacionavam uma pré-disposição moral para o mal, ou seja, uma mulher amoral tinha um impulso instintivo ao delito e por isso caiam na prostituição (VIDAL, 2020).
Os jornais da época mostravam como a sexualidade e gênero eram vistos, associando experiências homossexuais com assassinos, pedófilos e estupradores, pois assim o homossexual se tornava um “suspeito”. Sempre com o apoio da medicina e ratificada pelos tribunais e instâncias de justiça trazendo duas categorias: a da patologia e a da criminalização. Em 1977 o “homossexualismo” aparece no rol de doenças da Classificação Internacional de Doenças (CID). Em 1980, a chegada da epidemia de AIDS/HIV registrada inicialmente em homossexuais masculinos levando então à rápida relação da sexualidade com a doença, nomeada “peste gay”. Esses fatos aumentavam consideravelmente as violências cometidas contra a população LGBT (VIDAL, 2020).
A ideia de gênero é identificada como uma construção social, ou seja, um processo que só é identificado quando o indivíduo insere seu corpo na cultura e então o significa. Desse modo, não existe a ideia de um gênero ligado a características anteriores àquela existência, como por exemplo as características biológicas como costumava se impor. Entretanto, é justamente nesse contexto de construção social do gênero que são inseridas as normas sociais de repressão a tudo aquilo que fuja do que é socialmente entendido como “normal” e “adequado”. A partir disso surge a vigilância social sobre os gêneros e sexualidades que vão sendo legitimados pelo próprio direito (PRADO, et al. 2018).
Ao analisarmos o sistema judicial percebemos como o processo de formação de direitos são permeados pelo fenômeno de “cerceamento da agência dos sujeitos”, ou seja, a separação daqueles indivíduos que são reconhecidos como proprietários de direitos e aqueles que são marginalizados desse núcleo. No processo criminal, ao deparar-se em como a população LGBT é tratada ao figurar como suposto autor de algum crime, trazem à tona o discurso do “desviante”, aquele propício para o comportamento criminoso devido a sua característica de ir contra o sistema homogêneo de controle social. Tudo nele vai soando falso e errado, estabelecendo, portanto, a construção do “gênero criminoso”. Esses potenciais criminosos são julgados até mesmo quando se encontram no lugar da vítima, pois o atrelamento de suas identidades às condutas desviantes está sempre o culpabilizando (PRADO, et al. 2018).
O sistema penal funciona segundo ao que chamamos de “seletividade penal”, é nesse contexto que se insere as sexualidades e gêneros dissidentes. Os corpos de travestis e transsexuais são excluídos dos direitos e incluídos na criminalização. O sistema não funciona quando o assunto é apurar violências contra a comunidade LGBT, coberto por ineficiências e impedimentos institucionais. O descaso policial em investigar os casos, bem como o não reconhecimento das violências sofridas, julgando moralmente as vítimas e seus testamentos revelam como o sistema de justiça falha quanto à proteção do gênero e da sexualidade. Porém, ao falar em acusações dessa mesma comunidade as ações já mudam, pois a forma com que os corpos transsexuais e travestis são constantemente criminalizados demonstram como o poder penal se posiciona quando o assunto é atribuir a esses indivíduos a culpa (PRADO, et al. 2018).
Por fim, é necessário pensarmos em como o sistema de justiça age perante a população LGBT, criminalizando os indivíduos desviantes como suspeitos e propícios ao erro ao infringirem as normas, não aquelas normas legais, mas sim aquelas normas que são construídas socialmente através de estereótipos e preconceitos.
Dessa forma, pensar que são essas as normas seguidas para criminalizar e marginalizar os indivíduos não heteronormativos, ao invés daquelas normas reais construídas no contexto de um Estado Democrático de Direito, é pôr em debate constante como o sistema penal tem falhado no seu papel de enfrentamento do crime para começar, ele mesmo, a produzi-lo, um crime contra a população LGBT e seus direitos.
Referências:
PRADO, Marco Aurélio Máximo; MENDES, Bárbara Gonçalves; CARNEIRO, Júlia; VIDAL, Júlia Silva; LAMOUNIER, Gabriela Almeida Moreira; FREITAS, Rafaela Vasconcelos. A construção institucional do gênero criminoso. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.146, ano26, São Paulo: Editora RT, 2018
VIDAL, Júlia Silva. Criminalização operativa: travestis e normas de gênero. Dissertação (Mestrado em Direito),Universidade Federal de Minas Gerais, 2020.